segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Reflexão (10) - Dom Casmurro e Salomão

por Jefferson Ramalho

Há alguns meses eu li Dom Casmurro pela terceira vez. Magnífico!

Impossível ler atentamente Machado e não se lembrar das experiências da vida. Ele é erudito e prático ao mesmo tempo. Literato por excelência, perspicaz, sábio, envolvente e prazeroso.

Como dizia meu mestre em redação Ricardo Pântano nos anos de Mackenzie: “A leitura dos textos de Machado de Assis é um verdadeiro tesão”.

Uma passagem específica, mais que qualquer outra me tomou a atenção dos olhos, da alma e do coração principalmente.

Bentinho, o protagonista, estava fazendo tranças em sua amada Capitu. Ela, sentada de costas para ele, desfrutava do prazer de sentir as mãos do seu grande amor escorrendo em seus cabelos.

Daqui pra frente, prefiro compartilhar a passagem do romance nas palavras do próprio Machado. Não posso ser egoísta e ao mesmo tempo ingênuo em querer reescrever o que originalmente foi escrito com tanta perfeição.

"Enfim acabei as duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas? Em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra, alargando aqui, achatando ali, até que exclamei:

-Pronto!

-Estará bom?

-Veja no espelho.

Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.

-Levanta, Capitu!

Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...

Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas... Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux* (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos.

"É necessário fazer algum comentário?

Penso que não. Talvez Machado de Assis - apesar de ateu, segundo as más línguas - tenha sido o escritor que mais próximo chegou de muito do que Salomão escreveu em Cântico dos cânticos.

Um abração carinhoso e sincero aos amados!

na Graça,

Jefferson

ps. * Des Grieux: protagonista do romance francês Manon Lescaut, escrito em 1731 pelo abade Prévost, onde se desenvolve uma análise implacável da paixão amorosa, que arrasta o herói à perdição, levando-o da condição de adolescente e ingênuo a percorrer os caminhos da corrupção e da condenação. Sua amante Manon, personagem encantadora e vaidosa, amoral e incapaz de renunciar à tentação de um prazer, leva à perdição um homem ingênuo, fraco e exaltado. Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso. atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas... Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux* (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos."

Um comentário:

Edemir Antunes disse...

Jefferson,
graça, paz e bem!

Parabéns pelo blog. Que Deus continue a abençoá-lo.

Felicidades!