terça-feira, 19 de agosto de 2014

Reflexão (88) - Por uma filosofia prática de respeito e diálogo


por Jefferson Ramalho

Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente
Se você não concordar
Não posso me desculpar
Não canto pra enganar
Vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado
Vou cantar noutro lugar
(Geraldo Vandré; Théo de Barros)

O trecho poético acima citado pertence à letra da música Disparada, composta nos anos 1960 por Geraldo Vandré e Théo de Barros, mas que ganharia notoriedade na interpretação de Jair Rodrigues, ficando em primeiro lugar junto com A Banda, de Chico Buarque, no Festival de Música Popular Brasileira, em 1966.

O contexto histórico em que esta música foi composta corresponde a um tempo de ditadura política, cujo grupo dominante era formado por militares e elites político-econômicas que defendiam uma mentalidade conservadora, fechada às manifestações culturais, à liberdade de expressão e a uma distribuição econômica que beneficiasse aquela parcela da sociedade elencada por pobres, excluídos e marginalizados.

Se hoje podemos questionar os nossos governantes ou mesmo acusá-los pela corrupção que praticam, devemos isso àqueles que lutaram de frente contra um regime que era opressor, repressor, antidemocrático, moralista e violento. Muitos desses que lutaram contra a ditadura, sob a injusta acusação de serem criminosos, traidores da Pátria e até terroristas, pagaram literalmente com sangue por acreditarem que um dia viveriam num Brasil livre, democrático, no qual as pessoas poderiam escolher quem os governasse e protestar quando aquele que fosse escolhido não cumprisse o seu dever.

Muitos estudantes, artistas, intelectuais, políticos, jornalistas, religiosos, entre outros grupos sociais, insatisfeitos com a violência psicológica e física praticada pelo Estado, foram presos, torturados, expulsos do próprio País e até mortos. O que é pior, mesmo depois de mortos eram injustamente rotulados pelo governo militar e pela imprensa como pessoas criminosas, terroristas e de alta periculosidade para a sociedade.

Neste ponto é que o trecho que destacamos da música Disparada começa a fazer sentido. Nas dependências do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), com o intuito de interrogar pessoas envolvidas com a resistência ao regime militar, a polícia as torturava das mais diversas formas. Predominava o velho e intolerante argumento da disciplina por meio da agressão física e psicológica. Choques elétricos nas partes mais sensíveis do corpo, tapas, socos, pontapés, pauladas na cabeça e nas costas, queimaduras, afogamentos e tantas outras monstruosidades eram aplicadas por aqueles que faziam o papel de representantes da ordem, da moral e dos bons costumes contra aqueles que eram considerados bandidos, assassinos, sequestradores e terroristas, quando na realidade estes só queriam duas coisas para sua gente: liberdade e dignidade.

Sempre que a música Disparada chega neste verso que diz: Porque gado a gente marca / Tange, ferra, engorda e mata / Mas com gente é diferente, podemos pensar na luta e na vida de cada pessoa que foi torturada, que foi morta, que foi expulsa do seu País, e isso por causa da convicção que carregavam na alma e no coração de que algum tempo depois a história mudaria e todo aquele cenário de terror e opressão teria fim.

Os tempos mudaram, a liberdade veio, e mesmo com tantos problemas sociais e econômicos que ainda devem ser combatidos, aquelas páginas regadas por sangue e por lágrimas ficaram para trás e temos a esperança de que nunca mais voltem a ser escritas.

No entanto, por incrível que pareça, ainda há quem defenda a tortura, a pena de morte, a censura, o silêncio do outro. O mais triste está no fato de que essas práticas começam, muitas vezes, dentro de casa, no âmbito familiar. Esposo agredindo a esposa com o argumento ultrapassado de que o homem é chefe da casa, pais castigando seus filhos física e psicologicamente uma vez que fica difícil admitir para si próprio a dificuldade de conseguir educá-los por meio do diálogo, famílias inteiras que rejeitam um membro da família que é homoafetivo, sem falarmos das mais diversas expressões de preconceito por causa de cor, raça, gênero ou mesmo escolhas religiosas ou políticas.

Quantas pessoas ainda sofrem preconceito por serem adeptas de religiões afrobrasileiras ou evangélicas? Quantas pessoas ainda são agredidas de maneira física e psicológica por serem homoafetivas, por usarem determinadas roupas, por gostarem de determinado gênero musical, por seguirem esta ou aquela religião?

Poderíamos mencionar ou mesmo detalhar muitos outros exemplos: pessoas que são consumidas pelas drogas, sobretudo, por problemas diversos de estrutura familiar; jovens que se tornaram criminosos precocemente por causa da realidade social na qual nasceram; ex-presos que quando saíram da prisão se encontravam piores do que quando entraram, uma vez que o sistema prisional do nosso País mais educa para o crime do que para a recuperação do ser humano.

São raros os casos em que certa pessoa que sempre esteve inserida em um desses contextos tenha optado pela educação e pela cidadania. A regra, portanto, é o oposto.

A probabilidade de um jovem que nasce em uma família sem estruturas se tornar criminoso logo cedo é muito grande; também é maior a probabilidade de uma criança que foi agredida – não educada – à base de surras e doses periódicas de tapas e castigos físicos e psicológicos escolher o caminho das drogas lícitas ou ilícitas. O ex-preso no Brasil, infelizmente, não é sinônimo de ser humano recuperado para viver em sociedade, mas de alguém que, no imaginário popular, por ter sido uma vez bandido, sempre será bandido. Mesmo que recuperado, um ex-preso dificilmente terá a chance de recomeçar sua vida, tornar-se um trabalhador, pois além do frágil sistema prisional sob o qual viveu por anos, a própria sociedade não consegue vê-lo como uma nova pessoa.

Poderíamos pensar nos arcaicos, alienantes e alienados chavões do tipo “bandido bom é bandido morto”, “criança, para ser educada, tem que apanhar”, “mulher minha, se não obedece, apanha”, “apanhei dos meus pais e não morri por causa disso”, mas é desnecessário. Fiquemos com os versos de Geraldo Vandré e Théo de Barros, pois estes sim são muito mais carregados de inteligência, ternura e esperança. E aos insistentes em defender a velha tática da violência politicamente correta, a mesma música diz:


Se você não concordar / Não posso me desculpar / Não canto pra enganar /Vou pegar minha viola / Vou deixar você de lado / Vou cantar noutro lugar

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*A responsabilidade pelas ideias presentes no texto restringe-se ao autor