.

por Jefferson Ramalho
Reler e repensar a História, além de representar um grande desafio ao curioso historiador, é uma tarefa no mínimo instigante. O historiador que a isso se propõe deve estar preparado para receber críticas dos mais baixos tons, sempre provenientes - como não poderia ser diferente - das vozes e mentes mais conservadoras.
Justo L. Gonzalez, escritor cristão conhecido por todos aqueles que passam pela experiência de estudar teologia e história do cristianismo, é um dos historiadores cristãos que mais admiro. Sua obra há poucos anos lançada no Brasil com o título "História do Pensamento Cristão", em três volumes, é uma obra prima. Seu "Dicionário ilustrado dos intérpretes da fé" é também uma ferramente de valor singular. Além dessas e outras tantas obras de Gonzalez, quem não conhece sua famosa "Uma história ilustrada do cristianismo", em dez volumes, lançada no Brasil na década de 1980 por Edições Vida Nova?
Portanto, é inegável a contribuição da obra de Gonzalez no que diz respeito à recuperação, exposição e organização dos principais fatos da História do cristianismo, algumas vezes até dissertados com riqueza de detalhes, para que o estudioso protestante da América Latina conheça aquilo que a historiografia religiosa de linha tradicional tem apresentado como verdade histórica nesses dois mil anos de religião cristã.
Só que a problemática - termo muito utilizado a partir da Escola dos Annales - está exatamente nesse ponto: verdade histórica. Gonzalez é um Eusébio de Cesaréia das últimas décadas. E ao seu lado, pegam carona outros tantos teólogos que ganham o nome de historiadores pelo simples fato de recontarem o passado.
Hoje, gostaria de me concentrar em alguns pontos do primeiro volume da sua "Historinha" ilustrada do cristianismo. Quem já não leu e não aprendeu sobre o cristianismo primitivo a partir da obra de Gonzalez intitulada "A Era dos Mártires"?
O problema está logo na primeira página, no prefácio, quando Gonzalez afirma: "Em certo sentido, esta história é uma autobiografia [...]. Mas, mais que uma autobiografia individual, esta história é a biografia desse povo de Deus chamado igreja, onde minha fé foi formada e nutrida. Sem compreendê-la não compreendo a mim mesmo."(p.1).
Gonzalez escreve não como historiador, mas como um crente que pretende falar sobre a história de sua religião como sendo a verdadeira entre todas as existentes. Preocupa-se apenas em falar dos grandes feitos, grandes datas e grandes nomes da história do cristianismo. Apresenta sua religião como aquela que foi vítima de uma perseguição impiedosa do império - o que não deixa de ser uma hipótese verdadeira - mas se esquece, ou então prefere omitir, que o mesmo cristianismo, mesmo antes de sua institucionalização ocorrida no quarto século, também foi favorável à escravidão, por exemplo.
Como Eusébio, Gonzalez relata o martírio de Perpétua e Felicidade, chamando a primeira (Perpétua) - uma jovem de boa posição social (cf. p.136) - de heroína e apenas mencionando que Felicidade e Revocato eram escravos. Por que não explorar os detalhes a respeito de Felicidade, a escrava? Por que não questionar o fato de Perpétua, uma cristã rica, ter escravos?
Além disso, por que não olhar criticamente para a influência óbvia da cultura helênica tanto na composição dos textos do Novo Testamento como na própria formulação de princípios morais dos primeiros cristãos? Já que Gonzalez não trata dessas questões, recomendo duas obras: "O mundo moral dos primeiros cristãos", de Wayne A. Meeks, publicada no Brasil pela Editora Paulus, e o clássico "History of Dogma", de Adolf von Harnack, ainda inédito no Brasil.
Como já salientamos, Gonzalez reproduz com propriedade a história dos mártires com óculos eusebianos. Contudo, ao tratar da suposta conversão de Constantino e sua consequente proteção ao cristianismo, no final do primeiro volume e início do segundo, parece dissertar com olhares de admiração pelo imperador.
Não demonstra ver problemas na institucionalização da igreja, na construção das primeiras basílicas - o que representa a prática de sacralização do espaço no contexto cristão, o que conforme o Evangelho jamais deveria ser feito - e, por fim, Gonzalez parece aprovar o desenvolvimento de uma "teologia oficial", o que só aconteceu graças à proteção do Estado e à suposta conversão do imperador que para boa parte dos cristãos da primeira metade do quarto seculo era "o eleito de Deus".
Na próxima semana, se possível, pretendo refletir um pouco a respeito dos principais motivos da transformação ocorrida no cristianismo do quarto século, e isso com olhar especulativo, sem nenhuma intenção de proteger a aliança entre a Igreja e o Estado ou de defender a Ortodoxia que passa a ganhar uma força que nunca teve, a partir daquele momento. Ao contrário, com uma pitada de protesto, vamos tentar identificar quando foi que a igreja cristã começou a se tornar aquilo que ela nunca mais deixou de ser - uma instituição humana.
Abraços!
na Graça,
Jefferson