sábado, 13 de novembro de 2010

***** A historiografia cristã na História (parte 6)


continuação...

Constantino e as relações de poder entre o império e a cristandade

A história problema é uma preocupação historiográfica enfatizada a partir dos Annales. Se o historiador é um intérprete, ele pode em seu ofício identificar os problemas presentes num processo histórico, rompendo através dessa tarefa com aquele modelo tradicional que selecionava, apenas, os acontecimentos políticos de triunfo.

Este modelo, além de protagonizar as personagens políticas, omitia as relações de poder, as barganhas, as fraudes, e até mesmo alguns equívocos e conchavos que sempre foram pintados por historiadores positivistas como tendo sido acontecimentos que trouxeram importantes benefícios e ganhos. Os heróis que os historiadores positivistas criaram são os mesmos que promoveram as barganhas, os conchavos e os benefícios que uma história problematizada denuncia.

Paul Veyne salienta a importância do papel do salvador na concepção cristã. Assim, “o cristianismo tem um salvador original que não pode agradar a todos os gostos: o neoplatonismo era menos melodramático aos olhos de alguns eruditos. Essa foi a história da cristianização.” (Veyne, 2010, p. 36). Assim, a participação do imperador Constantino foi decisiva, pois somente uma autoridade de fora faria com que uma prática superasse outra. O imperador, que não era obrigatoriamente cristão, assume o papel de salvador de um grupo religioso – no caso, os cristãos – que até então era vítima da perseguição do próprio império. Para justificar esta atitude do imperador, a historiografia eusebiana o defende, o qualifica e o coloca na condição de escolhido por deus para libertar seu povo da opressão.

Os três últimos livros da História Eclesiástica de Eusébio são dedicados a relatar como que as relações de poder entre a cristandade e o império se estabeleceram.

Contudo, a linguagem utilizada por Eusébio demonstra as suas principais intenções.

Ele não está empenhado, somente, em defender sua identidade religiosa nas muitas vezes em que chama a religião cristã de “a religião verdadeira”, mas em reconhecer e propagar que o imperador Constantino, além de piedoso e benevolente, foi levantado pelo próprio deus para libertar os cristãos daquela última perseguição reiniciada em 303 por Diocleciano.

As comparações entre Constantino e o perseguidor Maxêncio, por exemplo, explicitam as intenções de Eusébio. Ele caracteriza Constantino chamando-o de “prudente e piedoso em tudo” (Eusébio, VIII, 13.13), “zeloso sucessor da piedade paterna” (Eusébio, VIII, 13.14), pois seu pai Constâncio, para Eusébio também o era, enquanto que ao se referir a Maxêncio, adversário de Constantino na batalha pela cidade de Roma, Eusébio desqualifica chamando-o de tirano, adulador, falso, criminoso, adúltero, devasso, assassino, supersticioso e pagão (cf. Eusébio, VIII, 14.1-13).

É interessante ao extremo para Eusébio, tornar evidente as características de Constantino e omitir os seus prováveis equívocos. Trata-se de uma parceria. Além das apologias tendenciosas escritas por Eusébio, também foi registrado em sua obra sobre os benefícios que esta aliança acabou proporcionando não somente à instituição religiosa, mas aos seus superiores. “Os bispos recebiam individualmente cartas, honras, ricos presentes do imperador.” (Eusébio, X, 2.2). O triunfo é a marca registrada deste último bloco da obra de Eusébio composto pelos três últimos livros*.

No intuito de legitimar ainda mais o aspecto salvador da figura de Constantino, Eusébio o relacionará à figura mitológica de Moisés do livro bíblico do Êxodo. A imagem de Constantino como um novo Moisés, resultante de um exercício hermenêutico elaborado por Eusébio, demonstra que as relações de poder entre o Estado e a cristandade estão apenas começando. É imprescindível para o autor da História Eclesiástica que sejam construídas analogias para que suas apologias façam sentido.

No discurso de Eusébio se desenvolve a partir de suas motivações. Afirmar que Constantino tinha a força de deus em si do mesmo modo que a personagem da Bíblia Hebraica a possuía trata-se de uma analogia simultânea a que ele constrói acerca de Maxêncio. Este é o Faraó dos dias de Eusébio, pois virou às costas ao deus dos cristãos – o verdadeiro, nas palavras do nosso historiador – deixando apenas evidenciada sua maldade, perversidade e injustiça.

Para Eusébio, Maxêncio terá recebido o justo castigo por seus atos contra os cristãos e por estar na condição de adversário do imperador levantado por deus. Como em muitas passagens da obra, a afirmação deste parágrafo vem condicionada a uma citação bíblica, no intuito de legitimá-la inclusive teologicamente.

Continuamos na semana que vem!

* Estruturada em dez livros, a datação de composição da obra de Eusébio ainda é uma incógnita. Hipóteses não faltam, pois há aqueles que são favoráveis a uma composição dos primeiros sete livros em data anterior a 303, ano em que o imperador Diocleciano deu início à última perseguição oficial aos cristãos. Outros preferem afirmar que os primeiros sete livros foram escritos num espaço de tempo bastante breve de apenas dois anos, entre 312 e 313. O que, porém, parece unânime, refere-se às datas de composição dos três últimos livros, os quais teriam sido escritos entre 313 e 317, sendo que, apenas a vitória de Constantino sobre seu cunhado Licínio teria sido registrada por Eusébio por volta de 324, compondo a parte final do décimo livro.

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