terça-feira, 2 de novembro de 2010

***** A historiografia cristã na História (parte 5)

por Jefferson Ramalho

continuação...

É possível pensar efetivamente em historiografia cristã a partir da obra História Eclesiástica, de Eusébio de Cesaréia. Escrita no início do século IV, foi a primeira obra de história do cristianismo e teve valor suficiente para proporcionar ao seu autor o título de “pai da história da igreja”. Cabe aqui uma breve reflexão a respeito dos problemas desta obra, os quais já foram identificados por muitos especialistas e comentadores de Eusébio.

Após a observação de tais problemas, e tendo como referencial os avanços da historiografia, pretendemos questionar acerca da permanência do estilo eusebiano em obras de história do cristianismo produzidas, sobretudo, na segunda metade do século XX. Isso demonstra, a princípio, que os autores destas obras além de não acompanharem os avanços da historiografia, permanecem – é o que pelo menos demonstram – com as mesmas motivações apologéticas e até políticas de Eusébio.

O historiador belga Eduardo Hoornaert, ao comentar sobre o estilo eusebiano de escrever a história, afirmou que “a tradição eusebiana só pode ser triunfalista e apologética. Triunfalista quando a instituição prospera, apologética quando ela se sente ameaçada.” (Hoornaert, 1986, p. 29). Hoornaert ainda demonstrará três problemas crassos no estilo de Eusébio escrever a história da religião cristã: a presença forte de uma relação entre o helenismo e o pensamento cristão dos padres da igreja, o eruditismo capaz de afastar o leitor não-iniciado e a explícita relação de poderes eclesiásticos e políticos. (cf. Hoornaert, 1986, p. 31 a 35).

Como se não bastasse essa clara tendência motivada pela institucionalização que a cristandade vivia naquele momento da história, a obra de Eusébio também traz sérios problemas metodológicos. Roque Frangiotti, por exemplo, aponta alguns:

Deve-se ressalvar, contudo, que suas inclinações e simpatias lhe tenham, por vezes, inspirado omissões surpreendentes e tendenciosas. Além disso, recrimina-se-lhe falta de síntese, a abundância de extratos, sendo alguns deles tão curtos que impedem qualquer compreensão. Tudo isso faz com que a obra se pareça, por vezes, mais com uma colcha de retalhos do que com uma história. Portanto, não se tem uma narração completa com a justa proporção dos episódios e o encadeamento lógico dos acontecimentos. O valor fica pelo trabalho, junto às fontes, dos documentos sobre a antiguidade eclesiástica, dos extratos de obras já perdidas. (Frangiotti In. Eusébio de Cesaréia, 2000, p. 23).

Para completar esta breve seleção de críticas ao estilo de Eusébio escrever a história da religião cristã, podemos mencionar as considerações de Hubertus R. Drobner:

[...] ele não faz distinção entre fontes primárias e secundárias, omite e parafraseia passagens, utiliza mais os autores ortodoxos que os outros autores cristãos, mais os escritores célebres do que autores menos conhecidos, as proporções da apresentação nem sempre fazem justiça ao conteúdo, e numerosos julgamentos deixam a impressão de superficiais ou unilaterais. [...] O que mais pesa é que nos últimos livros [8-10], que tratam da época de sua própria vida, ele não escreve com a mesma fundamentação, deixando lacunas e expressando-se de uma forma mais panegírica do que objetiva e sóbria. (Drobner, 2000, p. 237 e 238).

Pensando nas motivações, omissões e pretensões de Eusébio, percebemos as razões por trás das motivações políticas e não somente eclesiásticas, as seleções arbitrárias daquilo que lhe era interessante registrar e, por fim, as intenções apologéticas – tanto em favor da igreja, como em favor do imperador Constantino – que compõem a obra. Mas não é este o maior problema. Talvez, naquela época, sobretudo por causa do que a cristandade estava vivendo, dificilmente Eusébio escreveria uma história da igreja com outra tendência. Defender a sua própria religião parece óbvio para ele que era bispo.

Qual seria, então, um problema maior que o estilo de Eusébio? Parece-nos que a continuidade do seu estilo nas obras de história do cristianismo produzidas nos últimos cinqüenta anos ocorre por desconsiderar os avanços da historiografia.* De todas as observações que fizemos no primeiro tópico, entendemos que a problematização da história, proposta teórica da Escola dos Annales, é um importante fator a ser aplicado na historiografia cristã.

Para percebermos esta perspectiva da história problema na obra de Eusébio e no tempo em que a sua História Eclesiástica era produzida, destacaremos uma entre tantas questões que caracterizam bem esta experiência de transição na cristandade do século IV: as relações de poder entre o império e a religião cristã.

Continuo na próxima semana!

NOTA: *Assim como o modelo deixado por Eusébio está composto por diversas deficiências e desatualizado, principalmente após os avanços da historiografia, as obras que preservam o seu estilo apologético, acabam não acompanhando os mesmos avanços. A problematização da história, por exemplo, é uma das inovações propostas pela chamada Nova História, e que os historiadores da igreja não têm utilizado.

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