segunda-feira, 13 de setembro de 2010

***** A historiografia cristã na História (parte 3)

por Jefferson Ramalho

continuação...

O historiador enquanto filósofo: intérprete e não narrador do passado.

Em uma introdução aos estudos históricos deve conter uma apresentação de elementos que farão parte do ofício do historiador. Quem pretende trabalhar com o passado, deverá ter contato com as principais ferramentas de seu trabalho. Neste caso, a característica que pretendemos destacar é aquela que evidencia o lado autônomo do historiador, através do qual ele consiga elaborar uma historiografia aprofundada.

Para trabalhar com o passado, não é suficiente conhecer datas, nomes e cronologias. O historiador, de fato, não é aquele que memoriza estes dados, mas é aquele que, estando em contato com eles, consegue interpretá-los e avaliar o modo como foram reproduzidos pela tradicional historiografia. Assim, entendemos em primeira instância que o compromisso do historiador não se reduz à afirmação de uma verdade histórica absoluta, mas compreende em uma avaliação do que sempre foi reproduzido como verdade. Portanto, em uma introdução aos estudos históricos, cabe a pergunta: “que sentido terá para tornar-se um historiador?” (Marrou, 1978, p. 9).

O historiador francês Lucien Febvre (1878 – 1956), fundador da Escola dos Annales ao lado do medievalista Marc Bloch (1886 – 1944), teria afirmado em sua aula magna no Collège de France, em 1933, que por muitas vezes ouvira sem contestar “que os historiadores não têm grandes necessidades filosóficas” (Marrou, 1978, p. 10). Esta preocupação de Febvre se ampliou de tal maneira que culminou nos avanços da historiografia propostos pela geração de historiadores da qual ele fazia parte. Claro, esta preocupação não era apenas de Febvre, mas de um grupo considerável de historiadores que não viam mais suficiência na teoria histórica de matriz positivista. Dentre os principais problemas observados por Febvre e seus contemporâneos, estava o comodismo do historiador que seguia o método positivista de escrita da história, cuja função se resumia em, apenas, narrar o passado sem apontar quaisquer problemas.

Ao expor o programa historiográfico da Escola dos Annales e os seus rompimentos com o estilo positivista de escrever a história, José Carlos Reis afirma que:

A estrutura narrativa da história tradicional sintetizava todos seus pressupostos filosóficos: o progressismo linear e irreversível, que define o epílogo que dá sentido à narração; o seu caráter “acontecimental”, que, “recolhidos” dos documentos criticados, ficariam sem sentido se não fossem incluídos em uma ordem narrativa; a história política, diplomática e militar, que é constituída por iniciativas, eventos, decisões, que constituem uma trama que favorece a narração; a disposição “objetivista” do historiador, que recolhe os fatos dos documentos e, imparcialmente, os põe em ordem sucessiva, que é dada objetivamente pela cronologia, através da narração. (Reis, 2000, p. 74).

Portanto, para a narrativa histórica de caráter tradicional, o imprescindível consistia em reproduzir os fatos políticos mais importantes a partir de documentação oficial, respeitando linearmente uma ordem cronológica, fazendo jus à máxima de Leopold von Ranke, principal nome da historiografia positivista: was geschehen ist – “o fato tal como efetivamente aconteceu.” (Le Goff, 1982, 14).

É importante salientar a observação que Marrou fez com relação a esta perspectiva filosófica crítica da história, a qual não devemos confundir com a filosofia da história de Hegel, pois trata-se de uma filosofia crítica da história, ou seja, “uma reflexão sobre a história, dedicada ao exame dos problemas de ordem lógica e gnosiológica, levantados pelas formas de proceder do espírito do historiador.” (Marrou, 1978, p. 11).

Ao apontar os problemas do historicismo com o qual o historiador deverá romper ao assumir uma postura autônoma de intérprete, de filósofo, Marrou não deixa de considerar os perigos deixados como herança por esta crise da História. Para isso ele menciona que a essência deste dogmatismo histórico já estava criticado na totalidade do romance Guerra e Paz, de Tolstoi (1869).

Assim, os historiadores que, embora, não possuíssem a autonomia de um filósofo ou de um hermeneuta, por outro lado eram aqueles que narravam o passado tal como de fato aconteceu e, a partir destas narrativas, estruturas políticas, instituições religiosas, dogmas teológicos e tradições oficiais diversas eram cristalizados e recebidos como verdades absolutas. Foi isso, por exemplo, que aconteceu com as “verdades históricas” narradas por Eusébio, cujas intenções, sobretudo, eram teológicas, apologéticas e, até mesmo, institucionais, já que a cristandade estava se aliando ao império romano.

“Desta vez o historiador sucedia ao filósofo como guia e conselheiro. Senhor dos segredos do passado, era ele que, como um genealogista, trazia à humanidade as provas da sua nobreza, e retraçava o caminho triunfal do seu Devir.” (Marrou, 1978, p. 12). Neste caso, Devir tem certa relação com o positivismo de Augusto Comte, a idéia de progresso, mas não parece estar relacionado ao Vir a Ser de Heráclito. Isto porque, na prática, o que a historiografia positivista mais defenderá é um reconhecimento da história enquanto ciência, porém, com a defesa de verdades fixas, absolutas, ou seja, como já foi dito: o passado tal como aconteceu.

Marrou insiste em sua crítica à filosofia da história hegeliana, apontando o seu dogmatismo ingênuo e a sua pretensa independência do problema do conhecimento, que no século XIX foi ousadamente criticada por Kierkegaard. Maior problema, na opinião de Marrou, tem a ver com um retorno a esta tendência em plena metade do século XX. “Hegel assistiu ao primeiro florescimento de uma história verdadeiramente científica: ele é contemporâneo de Niebuhr e de Ranke, a quem veneramos como os iniciadores e os primeiros mestres da forma atual da nossa ciência.” (Marrou, 1978, p. 12).

Hegel faz críticas consistentes e, ao mesmo tempo, sarcásticas à obra de Niebuhr . Conhece tal obra, e por se tratar de um filósofo de altíssima competência, Hegel não hesitou em perceber os seus problemas. Como afirma Marrou, Hegel surge em face de Niebuhr, “como o filósofo apressado em concluir e em dogmatizar, incapaz de suportar as longas esperas que exige [...] a subalternação das ciências. Ficamos ligeiramente desconcertados pela facilidade com que elimina o problema [...], e se lança ingenuamente à construção de uma história filosófica.” (Marrou, 1978, p. 16).

Mas é em Hegel que “o historiador filosófico usa os resultados dos historiadores originais e reflexivos para interpretar a história como o desenvolvimento racional do espírito no tempo, algo que escapa a ambos os agentes históricos e a outros historiadores.” (Inwood, 1997, p. 162).

Para alguns “é possível fazer uma filosofia da história [...] porque, como toda realidade, também a história é racional [...]. A filosofia da história tem a tarefa de captar essa racionalidade, de captar o significado do que acontece na história.” (Rovighi, 2002, p. 747). Em Hegel, esta filosofia da história, também chamada de “história filosófica, tem a tarefa de captar o significado dos eventos históricos; evidentemente não dos eventos isolados, mas das grandes épocas históricas.” (Rovighi, 2002, p. 748). Neste sentido, Hegel não parece se diferenciar de Ranke, pois este na condição de principal representante do positivismo historiográfico que será atacado pela Escola dos Annales de Frebvre e Bloch, valorizava uma história científica que considerasse as grandes épocas, personagens e acontecimentos enquanto elementos protagonistas de uma história verdadeira e oficial.

A história filosófica hegeliana não é aquela historiografia reflexiva, elaborada com o intelecto, também não é obrigatoriamente crítica, erudita e filológica, mas se refere à historiografia que busca compreender os acontecimentos captando a sua racionalidade.

No século XIX foi que se ressaltaram as diferenças entre a história filosófica hegeliana e a chamada “verdadeira” historiografia, esta de caráter nitidamente factual, preocupada em reproduzir fielmente o passado, sem distorções e subjetividades, enquanto que aquela, para o próprio Hegel, seria até capaz de analisar a segunda.

Para pensar nas relações entre esta filosofia da história hegeliana com outras impressões historiográficas, também filosóficas, podemos levar em consideração o que buscaram Marx e Nietzsche, por exemplo, cada qual, à sua própria maneira, recomendarem a conversão de “percepções dos diversos tipos de história reflexiva em uma base para uma história genuinamente filosófica, uma história que não somente sabe alguma coisa acerca do processo histórico, mas sabe como sabe disso [...].” (White, 2008, p. 287). Porém, assim como Hegel, tanto Marx como Nietzsche não entendiam o conhecimento histórico como metodologia, mas enquanto problema de consciência, insistindo na necessidade de compreensão deste conhecimento histórico direcionado à vida presente, social e culturalmente, e não como mera contemplação do passado.

No campo da historiografia e na identificação do problema do “problema” da história “o propósito de Marx era traduzir ironia em tragédia e, em última análise, tragédia em comédia. Já Nietzsche encarava tragédia e comédia ‘ironicamente’.” (White, 2008, p. 288). O otimismo de Marx e o otimismo de Nietzsche diferenciam-se, em muito, do otimismo teórico, acadêmico e historicista de Ranke. Parece haver, portanto, uma abertura por parte destes filósofos para o campo da historiografia.

A história filosófica em Nietzsche, contudo, não faz dele um amante do hegelianismo. Ao contrário, foi um dos principais críticos da tendência historiográfica hegeliana. É ele quem escreve: “esta bela história universal é, para falar como Heráclito, ‘um monte de imundícies’! É o forte que se impõe, esta é a lei geral: se pelo menos não fosse ele tão freqüentemente o bruto e o mau!” (Nietzsche, 2005, p. 231).

O fato é que esta “tirania hegeliana” (Marrou, 1978, p. 16) há muito já está superada pelos avanços da historiografia. Mesmo com a tentativa de uma retomada desta historiografia, o método de Hegel já se faz ultrapassado. Semelhantemente, talvez ainda mais, a historiografia preocupada com a exatidão dos fatos passados, característica evidente no tom científico e acadêmico oficializado em Ranke, também se encontra em estado de extinção. Não se faz mais historiografia de modo sério recorrendo ao estilo rankeano, sobretudo, depois dos avanços da escrita da história ocorridos no século XX.

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