sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
***** A historiografia cristã na História (parte 7)
continuação...
O objetivo de Eusébio não consiste somente em enaltecer aqueles que estão do lado da cristandade. Da mesma maneira que Constantino é elogiado por Eusébio, Maxêncio é desqualificado e associado às intenções impiedosas. Chamá-lo de “o homem mais ímpio” (Eusébio, IX, 9.7) é, simplesmente, enquadrá-lo na condição de alguém que não exerceu bondade aos seres humanos, já que não foi piedoso para com os cristãos.
É para que a escrita de Eusébio ganhe uma força ainda mais triunfalista, que o imperador precisa ser comparado a uma personagem bíblica de peso, pois assim sua benevolência para com os cristãos será apresentada de um modo mais evidente. Da mesma maneira que os hebreus e seu grande líder teriam cantado louvações ao deus que supostamente os beneficiara contra os egípcios – pois antes que qualquer luta se sucedesse, os adversários foram afogados pela própria divindade no Mar Vermelho – semelhantemente os soldados de Constantino, além dele próprio, entraram em Roma entoando hinos de triunfo.
Aquele povo, segundo Eusébio, antes oprimido pelo impiedoso Maxêncio, agora recebe Constantino com exuberantes e insaciáveis aclamações de júbilo. Além do povo, membros do Senado e dignitários, tanto os excluídos como as crianças e as mulheres, se alegravam com o triunfo do imperador que chegava a Roma, dando início a uma trajetória de vitórias que em 324 o colocará na condição de único governante do Império Romano.
O que impressiona é o conjunto de adjetivos que o discurso de Eusébio oferece ao imperador triunfante. Ele o considera, fazendo analogia ao herói hebreu, um verdadeiro libertador, salvador e benfeitor. Todas estas caracterizações fazem parte da imagem de Constantino construída por Eusébio que, não somente pretende fazer apologia ao rei, mas, sobretudo, à veracidade de um suposto conteúdo teológico por trás da narrativa hebraica que nos primeiros séculos da nossa Era foi apropriada pela tradição cristã.
Estas relações de poder entre a cristandade do início do século IV e o império liderado apenas por um imperador e não mais por uma tetrarquia*, estão registradas não somente na História Eclesiástica, mas também na Vida de Constantino**, obra também atribuída a Eusébio. Curiosamente, é somente nesta obra de Eusébio que está o relato sobre a experiência mística de Constantino que culminou em sua conversão, o que para nós trata-se de um problema a ser resolvido do ponto de vista historiográfico, porque a mesma narrativa sobre esta suposta conversão não está registrada na História Eclesiástica.
O que levaria Eusébio a omitir tão importante ocorrência na vida do imperador? Esta omissão é uma das razões que colocam em dúvida a credibilidade da autoria de Eusébio em relação à obra Vida de Constantino.
No caso de Eusébio, mais do que isso, é o discurso em forma de panegírico que constrói a imagem de um herói. Marcel Simon e André Benoit comentam em sua obra, no capítulo sobre a conversão do imperador Constantino, que este, a princípio, estaria “vinculado ao paganismo clássico, à teoria da Tetrarquia que o dava como descendente de Hércules, e depois pouco a pouco lançando-se à prática do culto solar; a partir de 312, começou a manifestar simpatia cada vez mais acentuada para com a Igreja.” (Simon; Benoit, 1987, p. 307).
Os detalhes da suposta conversão do imperador encontram-se não somente na obra Vida de Constantino, atribuída a Eusébio, mas também em Sobre a morte dos perseguidores, de Lactâncio. Esta, da época em que a História Eclesiástica era produzida; aquela, apenas ao final da década de 30, após a morte do imperador, em 337.
De acordo com as duas narrativas a conversão de Constantino teria acontecido da seguinte maneira: ele teria tido uma visão antes da batalha que culminou na morte de Maxêncio e seus soldados, em outubro de 312, na Ponte Mílvia, sobre o rio Tibre, às proximidades de Roma. Constantino, que governava as regiões da Gália e da Bretanha, dirigia-se à capital imperial no intuito de conquistá-la, já que esta se encontrava sob o poder de seu adversário. Maxêncio também era imperador, graças à tetrarquia instituída por Diocleciano, e governava entre outros territórios do Ocidente, a tão cobiçada capital.
Talvez seja esta cobiça uma das principais razões que faziam de Constantino e Maxêncio dois inimigos políticos, e não aliados conforme deveria ser, já que governavam territórios distintos de um mesmo império. O ódio pelos cristãos de um lado e a simpatia por outro, não nos parecem ser as grandes motivações daquele conflito entre aqueles dois imperadores. Mesmo porque, apesar da presença de cristãos em diversos e estratégicos pontos do império romano, “não constituíam mais de dez por cento da população e estavam pouco representados no exército e na aristocracia.” (Kee, 1990, p. 21). Por que dois imperadores lutariam por serem divergentes nesta questão?
Resumidamente, Constantino teria visto, ao início da tarde, uma cruz luminosa no céu, acima do sol, com a seguinte inscrição: In hoc signo vinces (Por este sinal vencerás). Após terem testemunhado aquela visão, Constantino e seus soldados caíram assombrados. Tanto Eusébio como seu contemporâneo Lactâncio, intencionalmente apresentaram o imperador Constantino como um novo cristão, a partir daquela experiência mística que teve ao lado de seu exército.
Na noite seguinte, o imperador em sonho teria recebido uma mensagem do próprio Cristo de deus, ordenando que aquele sinal que lhe aparecera em visão, deveria ser desenhado nas roupas e escudos de seus soldados. Uma confirmação acerca da mensagem que apareceu sobre a cruz também foi feita naquele sonho. Constantino, segundo os historiadores apologistas, passara a alimentar a certeza de que por ter tido aquela visão, se tornaria vencedor na luta por Roma, contra seu adversário Maxêncio.
Uma vez legitimada a visão da cruz, surge o que até hoje é reconhecido como símbolo da cristandade. O lábaro de Constantino corresponde ao que ele teria visto no céu. São as letras gregas Χ (khi) e Ρ (rô), as duas primeiras do nome Cristo (ΧΡΙΣΤΟΣ). O lábaro de Constantino também legitima a filiação religiosa que o imperador passava a ter desde que resolvera adotar ao deus dos cristãos. Uma vez Constantino tendo vencido Maxêncio em 312 na Ponte Mílvia, aquele “lábaro não somente foi o símbolo de sua aliança com Deus, mas também da vitória.” (Kee, 1990, p. 31).
Era, porém, importante que o imperador tivesse uma filiação divina. Como antes ele já teria tido uma experiência no templo de Apolo, legitimando sua filiação do deus Sol Invictus quando rompera com a religião de Hércules, a visão da cruz não passaria de uma adaptação daquela experiência anterior. Trata-se de “uma visão que o imperador tivera na Gália, no interior de um templo dedicado a Apolo, no verão de 310.” (Simon; Benoit, 1987, p. 317).
Esta informação consta nos fragmentos dos Panegíricos Latinos, em favor de Constantino. Rápida observação nestes documentos permite-nos pensar em uma trajetória religiosa do imperador, que se dividiu basicamente em três momentos: religião de Hércules-Júpiter (306/307), religião de Apolo-Sol Invictus (310) e aliança com o deus dos cristãos (312).
Portanto, as narrativas de Eusébio sobre as experiências místicas que Constantino supostamente vivenciou, não são suficientes para legitimar ocorrências históricas, mas demonstram a sua tendência apologética, seja enquanto bispo ou enquanto historiador.
Fica, aqui, uma relação introdutória do trabalho do historiador das religiões, neste caso, da religião cristã, com a perspectiva da filosofia da religião, pensando numa autonomia que permite uma ultrapassagem, pois neste sentido não haverá mais os limites de uma historiografia reduzida à simples reprodução do passado ou à tendenciosa valorização de grandes personagens. Ultrapassando estes limites, o historiador – agora, também filósofo – poderá problematizar e interpretar o passado, avaliando-o de maneira crítica.
*Desde Diocleciano, o Império Romano era governado por uma Tetrarquia. Neste período que estamos estudando, por volta de 312, Constantino governava as regiões da Gália e da Bretanha, enquanto Maxêncio governava Espanha, Itália e norte da África. Simultaneamente nas regiões do Oriente governavam os adversários Licínio e Maximino Daia.
**O próprio imperador teria solicitado a Eusébio a elaboração de uma obra panegírica que foi intitulada Vida de Constantino. Publicada apenas após a morte do imperador, esta obra tencionava defende-lo diante das acusações e preservar a sua memória que, segundo o autor, de fato, tornara-se o primeiro imperador cristão. Deve-se ressaltar que não há certeza sobre se a autoria desta obra é realmente de Eusébio.
Na próxima postagem, a conclusão do artigo!
Até lá!
Jefferson
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