segunda-feira, 8 de junho de 2015

Reflexão (90) - Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que fazem!



por Jefferson Ramalho

Se você acha que estou, com este título acima, referindo-me aos milhares de seres humanos que estavam em São Paulo ontem lutando pelos seus direitos e, em meio ao movimento, simularam de maneira intolerante e agressiva a cena clássica da crucificação de Jesus, enganou-se.


Quem tem o mínimo de conhecimento bíblico com base numa exegese histórico-crítica bem elaborada, munida de ferramentas hermenêuticas livres das algemas dogmáticas e, é claro, sem medo de desconstruir quando necessário, saberá que o menos importante na narrativa da crucificação e de tantos outros episódios ali contados é a afirmação de sua veracidade factual.

Portanto, o mais importante, desde os novos parâmetros interpretativos inaugurados no auge do século XIX pelo pregador protestante, filósofo e teólogo Friedrich Schleiermacher (1768-1834), não é a historicidade de um episódio narrado na Bíblia, mas a mensagem que tal narrativa pretende passar. Essa perspectiva seria ampliada no mesmo século XIX e depois no XX por outros tantos intelectuais, quase todos de matriz protestante, como Adolf von Harnack, Rudolf Bultmann e Paul Tillich, cada qual em sua área de investigação.

Assim, o importante não é o milagre enquanto fato, mas o milagre enquanto metáfora que tem uma mensagem ética a ensinar. De que adianta acreditar na multiplicação dos pães como algo mágico, sobrenatural, fantasioso, se não aprendermos a dividir nossos pertences com quem não tem nada, como fez aquele menino que dividiu com milhares de pessoas seus únicos cinco pães e dois peixes, estimulando por meio do seu gesto a atitude de outros que também tinham e, sensibilizados, passaram a dividir?

Quem conhece o mínimo acerca da história de Jesus de Nazaré, independentemente de considerá-lo apenas humano, apenas divino ou simultaneamente humano e divino, sabe que o seu martírio representa a história de pessoas excluídas, discriminadas, oprimidas, marginalizadas. Portanto, não adianta absolutamente nada encenar a Paixão de Cristo todos os anos se não entendermos que aquilo tudo é mais que uma interpretação artística; que a Paixão de Cristo é, na verdade, não a teatralização anual da história de seu martírio, mas a história dos milhões de seres humanos que por causa da cor, da raça, do gênero, da condição sócio-econômica, da opção e condição sexual são martirizados todos os dias, injustamente. Sim, injustamente, pois não há culpa em nada disso, embora as “brilhantes mentes conservadoras” insistam em dizer o contrário.

Para não ficar enrolando, quero concluir dizendo de maneira simples e direta. Embora não tenha ido à Parada Gay, as imagens que vi na TV, na internet, em vídeo ou em foto, dessa cena, foram belíssimas – sim, belíssimas – pois apesar dessa cena representar um momento de dor e sacrifício de um ser humano, conseguiu trazer à tona aquilo que em sua origem, enquanto fato ou narrativa, pretendia transmitir como mensagem.

Talvez, nesses dois mil anos, poucas encenações da Paixão de Cristo conseguiram ser tão autênticas, verdadeiras e fiéis ao significado original da narrativa bíblica. Quando Jesus era crucificado, ali na Cruz não estavam os religiosos, os sacerdotes, os doutores da Lei, os teólogos conservadores, os guardiões da santa doutrina, mas os maltrapilhos de posse e de alma, os excluídos, os marginalizados, dentre os quais estão nossos milhares de semelhantes que são homo-afetivos, independentemente de como sua homo-afetividade de expressa.

Não houve blasfêmia, não houve intolerância, não houve cristofobia como alguns têm dito e postado ao longo do dia de hoje. Ao contrário, se Jesus estiver vivo, não tenho dúvida de que ontem Ele alegrou-se em ver que um ser humano finalmente entendeu o significado da Cruz, a saber, a expressão do grito oprimido de um inocente.

Enquanto isso, sobre os religiosos e doutores da Lei e da Moral de nosso tempo, sim, os Malafaias, os Felicianos, os Eduardos Cunha, os Bolsonaros entre outros tantos que estão, estes sim blasfemando, o Cristo estará bradando mais uma vez, lá do alto: Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que fazem.

J.R.

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