dr. Lourenço,
Bendita seja a hora em que o senhor leu o meu modesto artigo Cristo é o Caminho, o Cristianismo é o desvio.
Mais uma vez, obrigado por tê-lo lido e perguntado se eu me referia ao Cristianismo ou à Cristandade.
Quando por e-mail lhe agradeci, o amado muito educada e gentilmente me respondeu: Não há de que. É apenas um detalhe, mas que achei importante citar. Recentemente conclui meu doutorado em que trabalhei um pouco sobre cristianismo-cristandade em Enrique Dussel e o cristianismo como alternativa vencedora dos movimentos de Jesus na abordagem de Eduardo Hoornaert.
Diante disso, passei a encarar a resposta ao seu comentário como uma verdadeira missão. Contudo, após ler Enrique Dussel, que há aproximadamente quatro anos ficara abandonado em minha prateleira e Eduardo Hoornaert, que localizei através de uma busca rápida na internet, fiquei simplesmente maravilhado. Mais do que isso, se minha leitura não estiver incorreta, percebi que o que escrevi naquele modesto artigo não foi tão absurdo assim.
Além de consultar Dussel e Hoornaert, também bati um papo com Kierkegaard, numa conversa em que somente ele falou, claro. Lembrando que sou cristão e não acredito em conversas com os mortos, mas neste caso, bem que valeria a pena a invocação a espíritos mais elevados fazer parte da crença e da prática cristãs. (Meu Deus, agora que me jogarão na fogueira, mesmo!).
Percebi que ao me referir ao Cristianismo não-bíblico, ou seja, o institucional, terreno, humano, político e corrupto, eu estava me referindo à também chamada Cristandade. Mas ao me referir ao Caminho, eu me referia ao Cristo – não a uma organização ou movimento chamado Caminho – eu me referia ao Evangelho Encarnado, ao Cristianismo Real e Bíblico, o do Novo Testamento, o do Livro de Atos, àquele que para Eduardo Hoornaert não tolera o proselitismo.
Muito pertinente as palavras de Hoornaert no seguinte comentário:
Quando procuramos saber com certo rigor científico como se originou o cristianismo, nos defrontamos com diversas explicações. Uns dizem que Jesus fundou a igreja tal qual a conhecemos hoje, e que por conseguinte São Pedro foi o primeiro papa. A igreja seria a expressão mais legítima da idéia de Jesus. Essa é a explicação católica clássica. Outros dizem que ele pregou uma mensagem subversiva que depois foi recuperada pela igreja. Os que falam assim situam normalmente o surgimento da igreja na segunda parte do século II. Essa segunda explicação começou a ser contemplada no começo do século XX por protestantes alemães, professores como Adolfo von Harnack, Ernst Troeltsch, Max Weber e outros. Eles tiveram que arcar com oposição dentro de suas igrejas, mas sua tese ganhou sempre mais adeptos e, hoje, é aceita pela maioria dos estudiosos protestantes. No campo católico a coisa foi mais difícil. Um padre francês, Alfred Loisy, fez, igualmente, no início do século que se finda, uma claríssima distinção entre evangelho e igreja. Dele é a famosa frase: ‘Cristo pregou o evangelho, mas o que veio foi a igreja’. Loisy sofreu a mais ferrenha oposição, foi humilhado, taxado de ‘modernista’ e morreu isolado de seus colegas. Se eu não estiver enganado, até hoje os candidatos ao sacerdócio católico têm que prestar o juramento anti-modernista. Não sei se já foi abolido. Mesmo assim, a tese de Loisy está sendo aos poucos assimilada nas recentes publicações católicas, e aceita como conclusão de novas e valiosas pesquisas históricas. Efetivamente, depois dos livros de Crossan, Meier, Charlesworth e outros (todos pela editora Imago) é difícil sustentar ainda que Jesus ‘fundou a igreja’.
Sobre o que li de Enrique Dussel, fiquei bastante satisfeito, especialmente ao ler palavras como estas:
A Christianitas (Cristandade) veio a identificar-se com o cristianismo. A Teologia aceitou demasiadas estruturas imperiais, sociais, culturais, lingüísticas, sexuais, como momentos essenciais do cristianismo. Dessa maneira, a grande teologia com método platônico ou neoplatônico veio a justificar a dominação política e social dos primeiros séculos da Cristandade bizantina e latina.
Por fim, eu diria que a melhor maneira de sair dessa “enrascada” seria dizer que ao chamar o Cristianismo de desvio, me referi ao Cristianismo da Cristandade e não ao Cristianismo do Evangelho de Jesus Cristo.
Para salientar essa – talvez muito ingênua – convicção, me ampararei nas citações e comentários que o historiador Justo L. Gonzalez faz de Sören Kierkegaard:
Embora Kierkegaard tenha sido aclamado como um grande filósofo e o fundador do Existencialismo moderno, ele não se viu como um filósofo, mas, ao contrário, como um cavaleiro da fé a quem fora dada a missão de tornar o Cristianismo difícil. O que ele quer dizer com isto não é que ele deseje impedir outros de se tornarem cristãos, mas, pelo contrário, que ele deseja mostrar quão ardoroso e desgastante é o Cristianismo, para desafiar grandes almas a abraçá-lo. O “Cristianismo da Cristandade” não é Cristianismo real. [...] Em um curto artigo publicado em 1854, ele atacou os ministros populares e bem-sucedidos de seu tempo, dizendo que “representar um homem que, por meio da pregação do Cristianismo alcançou e gozou em grande medida todos os bens e prazeres seculares, representa-lo como uma testemunha à verdade é tão ridículo quanto falar sobre uma mulher solteira que está cercada por sua numerosa tropa de crianças”. E em outro lugar, ele torna claro o impacto radical que o verdadeiro Cristianismo deve ter na pessoa que o abraça.
Bem, penso que seja isso.
Agradeço muito pela contribuição que o senhor me deu ao simplesmente perguntar: Colegas, vocês estão falando de “cristianismo” ou “cristandade”?
Abraço!
na Graça,
Jefferson
Fontes consultadas:
DUSSEL, Enrique. Teologia da libertação – um panorama de seu desenvolvimento. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. (trecho citado: p. 17).
GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão – da Reforma Protestante ao século XX – vol. 3. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. (trecho citado: p. 372).
HOORNAERT, Eduardo. http://www.igrejanova.jor.br/hispor.htm.
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