quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Reflexão (79) - Entre a filosofia e a fé


por Jefferson Ramalho

Por que professores de filosofia frequentemente são questionados sobre se acreditam ou não em Deus? Perguntam-me isso no ensino fundamental, no ensino médio e no ensino superior. Entre crianças, adolescentes e seminaristas com os quais tive e tenho a oportunidade de trabalhar com a área filosófica já me dirigiram esta pergunta.

Talvez, uma razão que os leva a pensar que sou ateu tenha a ver com a maneira crítica que tenho tentado tratar de temas como deus, fé e espiritualidade. Infelizmente as pessoas são ensinadas a acreditarem que essas categorias só podem ser entendidas conforme definidas no âmbito institucional da religião. No entanto, não é assim que entendo que se devam interpretar esses elementos.

Para mim, categorias como fé, divindade, espiritualidade e tantas outras merecem múltiplas definições. Não é necessariamente a forma como, por exemplo, o cristianismo as define, que está correta. Devem ser consideradas definições provenientes dos universos hindu, budista, islâmico, umbandista, candomblecista, para não citarmos todos. É essa multiplicidade que, em minha opinião, embeleza com maestria esse composto tão importante para a existência humana que denominamos religião.

Agora, que importância seria esta? Sabemos o quanto líderes religiosos se aproveitam e manipulam pessoas simples no intuito de se enriquecerem, se promoverem, se estabelecerem como referenciais de vida a fiéis e devotos. Portanto, em primeiro lugar, não são esses líderes que de fato dão sentido à experiência religiosa das pessoas, mas a espiritualidade em si que elas praticam.

Em segundo lugar, a espiritualidade muitas vezes é confundida com ingenuidade. Contudo, prefiro entender que por mais ingênua que uma devoção religiosa pareça ser, ela consegue dar ao ser humano um sentido que nada mais consegue, e isso independe dos rótulos, das marcas, dos dogmas, do livro sagrado, da maneira como se entende ser a vida após a morte, do sacerdote ou líder que comanda, da liturgia, da falta ou excesso de erudição.

Como professor de filosofia, não sou necessariamente ateu, mas entendo que até o ateísmo pode ser considerado uma espécie de experiência religiosa. Não rompi com muitas das maneiras de entender a fé, a divindade e a devoção religiosa do modo como as compreende o cristianismo, mas não sou ingênuo ao ponto de pensar que todas as outras formas de defini-las estão erradas. Sem dúvida o diálogo e o respeito à convicção e devoção do outro são muito mais saudáveis do que toda e qualquer forma de exclusivismo que, arrogante e intolerantemente costuma afirmar que somente os seus princípios de fé é que são válidos.

Não sou filósofo, nunca serei. Sou apenas um leitor e um professor de filosofia. Como é a história que corre em minhas veias, confesso a tendência historiográfica que adoto ao estudar e lecionar filosofia. Este acaba sendo o recorte predominante que normalmente faço. E quando o assunto é religião, me desprendo de toda e qualquer posição pessoal que tenho a respeito, pois sem dúvida é muito mais saudável demonstrar que o universo religioso é de fato um universo, e não um pequeno vilarejo – ou mesmo um gueto, como diz meu mestre e amigo Ronaldo Cavalcante – e por ser um universo tão infinito, seria arrogância, ingenuidade ou burrice achar que a vida humana em contato com aquilo que alguns como Rudolf Otto e Mircea Eliade chamaram de Sagrado se resume no que o cristianismo proclama como única e absoluta verdade.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Reflexão (78) - Meu muro de lamentações


por Jefferson Ramalho

Deve fazer algumas semanas, foi-me dito que meu blog mais parece um muro de lamentações. Com todo o coração devo reconhecer que não poderia ser feita melhor caracterização ao que pretendo sempre que escrevo e posto alguma coisa por aqui – pena que ultimamente não tem dado tempo para eu escrever tanto, pois tenho me dedicado sobremaneira às vagabundagens que me sustentam.

O fato é que depois de ter lido tantos PhDs em vagabundagem como Rubem Alves, Leonardo Boff, Aristóteles, Agostinho, Nietzsche, Kierkegaard..., não sei o porquê, mas resolvi tentar tornar-me um também. Entre estes caras há muitas diferenças e concordâncias, mas uma coisa eles tiveram em comum: foram e são verdadeiros vagabundos! Quem me dera ser um dia vagabundo como um deles! O mais interessante é que os séculos passam, mas os pensamentos que eles tiveram, certamente enquanto vagabundavam, acabaram ficando e hoje servem até para sustentar os mais medíocres absurdos.

O alemão Goethe, por exemplo, no auge da Revolução Industrial e da consolidação do capitalismo, em vez de trabalhar numa fábrica, resolveu dedicar-se à vagabundagem de escrever poemas, músicas, peças e romances. No entanto, para aqueles que não o conhecem para além de sites de busca de pensamentos e máximas, Goethe nunca parou de estudar. Era, certamente, aquele tipo de vagabundo que pensa coisas do tipo: __eu só tenho uma vida, como posso não aproveitá-la estudando, ainda que isso não me traga absolutamente nenhum retorno e eu venha morrer na miséria?

Aqueles que trabalharam nas fábricas dos séculos XVIII e XIX, fizeram parte de uma massa injustiçada, oprimida e anônima. Por outro lado, vagabundos como Goethe permaneceram lembrados e citados até hoje, século XXI, inclusive por aqueles que nunca leram sequer uma de suas linhas.

Seria pretensão demais para mim achar que estou no nível de um Goethe, de um Kierkegaard, de um Nietzsche. Oras, como pensar o desespero humano sem ler o filósofo dinamarquês? Desespero típico de um vagabundo. Um homem que por tantas instabilidades existenciais acabou por tornar-se nada menos que o pai do Existencialismo. Abandonou a noiva para dedicar a vida aos estudos e entrou em profunda depressão depois que descobriu que ela se casara com outro.

E Pedro Abelardo? Filósofo aristotélico e professor na Universidade de Paris, um vagabundo por excelência, acusado de corromper os jovens parisienses e, como se não bastasse sua fama, transou com a mulher errada e que era ao mesmo tempo a única mulher com a qual ele poderia transar. Heloíse! Resultado: foi castrado por ordem do tio da moça. Coisas desse tipo só acontecem com caras que não têm o que fazer da vida.

E Nietzshe? Louco? Pode ter sido, mas indubitavelmente o maior filósofo do século XIX. Não se pensa o ser humano, as agonias, as prepotências, os sentimentos de grandeza e de justiça própria, sem se levar em conta o que somente Nietzsche percebeu. A síndrome de super-homem tomou conta da cabeça e do coração de tantos milhões de seres que definitivamente se deixaram seduzir pelas possibilidades oferecidas por esse mundo moderno ou contemporâneo – como queiram.

Abelardo, Kierkegaard, Nietzsche, Marx, Sartre, e tantos outros não tiveram blogs para postar suas injúrias, suas blasfêmias, suas revoltas, seus rancores, seus amores, seus desesperos, suas “orações”, suas invocações, seus medos, suas (in)certezas... Mas tiveram o papel e a tinta, e, mais do que isso, tiveram tempo, como verdadeiros vagabundos que foram, e deixaram registradas todas as suas lamentações. Muitos deles, quase todos, morreram miseráveis, sem casa própria, sem emprego fixo, sem carro do ano, sem roupas novas, sem um puto no bolso. Nem por isso, deixaram de ser dignos; nem por isso, deixaram de ganhar a vida; nem por isso, foram esquecidos como meros operários injustiçados pela exploração desse mundo capitalista tão opressor como é o nosso.

Eles pensaram aquilo que quem se dedica oito, dez, doze horas ao dia aprisionado numa fábrica não consegue pensar; eles enxergaram aquilo que muitos que os julgaram e os consideraram vagabundos estão impossibilitados pelo sistema de perceberem o que ocorre um palmo à frente dos próprios narizes. E Maquiavel? Dormia o dia inteiro, quando chegava por volta das 19 horas tomava banho, vestia a melhor roupa que estivesse em seu armário naquela noite, entrava em sua biblioteca e de lá só saía às 6, 7, 8 da manhã seguinte. Um baita de um vagabundo! Lido incorretamente, se tornou referência para aqueles que viram nele um filósofo que concordava com a tirania dos reis absolutistas, mas lido corretamente foi interpretado como pai, não do maquiavelismo, mas da democracia moderna.

Eu? Um vagabundo! É assim que o professor é chamado por muitos nesse mundo fadado à industrialização da cultura, ao consumismo, à concorrência, à superação e até à auto-superação. Eu, por exemplo, não estudo para ser o melhor professor. Eu estudo porque tenho prazer em estudar. E quando entro em classe para lecionar, não entro para ensinar, entro para aprender. Só para lembrar, todos esses vagabundos que citei acima, como não poderia ser diferente, foram professores também.

Voltando ao meu muro das lamentações – ou seria muro das minhas lamentações? – devo agradecer aos mais de cem amigos e amigas que, por terem se tornado seguidores deste modesto e vagabundo espaço, disseram com isso que de vez em quando gostam de passar por aqui para ver quais são os meus lamentos, para perder tempo lendo aquilo que só se transformou em palavras porque antes se encontrava escondido na alma. Eu diria: __não apenas um muro de lamentações, mas também de lágrimas; e quem não tem razões para chorar ou para se lamentar, não é ser humano. Pode ser um fantoche, um boneco, um robô, mas com certeza não é ser humano.

Plagiando o marxista Chaplin, que diga-se de passagem foi um grande Vagabundo: não somos máquinas, somos seres humanos, embora a maioria de nós pareça preferir ser e funcionar como se fosse uma máquina.

no muro,
Jefferson